Trilha Cachoeiras de Ribeira e Macambira

A trilha foi tão dura, que ainda estou cansado para produzir uma introdução...

E ela é de vocês, toda de vocês. Por favor, sintam-se à vontade...

Se eu pudesse, também mandaria um pouco de poeira.

Assim, mando apenas o meu abraço.



Trilha Cachoeiras de Ribeira e Macambira
(Paulo R. Boblitz - out/2009)


Cinco horas em ponto, eu já estava no local de encontro; aos poucos foram chegando todos, caras de sono, mochilas nas costas, apetrechos e bicicletas. Mais um pouco chegava o Caldas, trazendo algumas bicicletas já no reboque.

Seis e meia, com um atraso de meia hora, partimos para Itabaiana, lugar de serra bonita e nascentes límpidas em cascatas. Antes da cidade, chegamos no povoado Gandu, poucas casas, pouco movimento, curiosos nas janelas, expectativas no ar.

Oito horas de uma manhã ensolarada, ligeira explicação de um mata-burro mais adiante, logo depois de uma descida forte, logo após uma curva. Fizemos uma pequena Oração, e partimos cerca de 35 trilheiros, 28 de Aracaju, e mais 7 convidados de Lagarto. Saímos em lenta navegação por um estradão de piçarra, aquecendo-nos em fraca pressão sobre os pedais.

O início foi gostoso, leve descida por algum tempo, mas isso significava nova subida depois, por quanto tempo..? A resposta não tardou a aparecer, e logo estávamos em ascensão, e em descida, e em subida, sempre alternando uma com a outra, suando forte sob um Sol não menos raivoso.

Em pouco tempo chegávamos à pequena cidade de Ribeira, onde paramos num breve descanso sob frondosas árvores, numa singela praça de interior. Servimo-nos de água, comemos laranjas, maçãs, goiabas e bananas.

Estávamos próximos da grande ladeira que meava com o mata-burro depois da curva; agora o cuidado se fazia.

Partimos novamente, primeiro uma breve e leve subida, depois a insinuação da descida, e finalmente a rampa acentuada com um tremendo perigo: seixos pequenos, médios e grandes, rolando sob nossos pneus, mesmo com os freios acionados. Às vezes, parecia que estávamos sobre roletes, adotando a bicicleta, direções que não queríamos.

Nela, Barriga quase deu um Babalú, manobra espontânea não prevista, quando a suspensão dianteira trava no chão, a traseira levanta no ar em rabo de arraia, em perfeita capotagem. Parecemos carretas quando o reboque produz um "L". Barriga liberou os freios, saltou da bicicleta como pôde, ralou um pouco o joelho, enquanto a pobre magrinha dava 2 cambalhotas no ar, uma pena, considerando o equipamento, pois que perebas cicatrizam, criam cascas e ficam como novas, algum tempo depois.

Pouco antes dessa inflamada descida, pude ouvir duas velhas na calçada, a comentarem sobre mim:

- Esse daí, morre já...

Olhei para as duas mas fingi que não havia escutado; dei-lhes um bom dia e um sorriso, e segui adiante, afinal, todo mundo tem direito de pensar...

Aos pulos e solavancos, qual cabritos monteses, sem tempo nem para rezar, sem freios que pudessem obedecer, chegamos na dita curva, que nem era assim tão fechada..., mas o mata-burro perigosíssimo, pois por economia, não havia sido construído na transversal, mas alinhado com o eixo da via, fatal para pneus que ali se encaixassem, trampolim e catapulta para os que nele estacassem.

Enfim chegamos lá embaixo, no sopé da grande montanha de rocha, onde uma pequena tenda de acampamento estava montada, duas motos estacionadas, ninguém à vista. Não fizemos barulho e apeamos, e logo seguimos para a primeira cachoeira, que na verdade era só uma pequena corredeira, pois a cachoeira de verdade, ficava 10 minutos de caminhada, e não tínhamos tempo para incursões; o tempo passa depressa quando estamos ocupados, e tínhamos percorrido apenas dois quintos do percurso.

O Sol já ia alto, e a subida de volta nos convidava a um bom banho, esfriarmos totalmente como se começássemos dali em diante; preferi me preocupar com a vertente inclinada e escorregadia em rocha única, que nos levava ao gostoso banho, água colorida a parecer coca-cola, fruto de mata fechada a alimentar o manancial com seus restos folhosos, sinal de rio velho ou em leito rochoso.

Cláudia segredou que já conhecia o local, apontando-me o íngreme rochedo em que havia realizado um treinamento de rappel. Olhei para o alto, olhei para ela, olhei para o alto novamente e respeitosamente a encarei com um leve sorriso de aprovação; ela é militar, apenas isso posso contar...

Como esse mundo é muito pequeno, acabamos descobrindo que trabalhamos por um bom tempo na Amazônia, eu na província petrolífera de Urucu, ela navegando nas infinitas artérias daquele mar; lembrou-se da luzes de nossa Base, uma estrela a brilhar em plena escuridão sombria da selva, como o verdadeiro espaço sideral, um lugar onde só enxergamos o Sol quando ele está por volta do meio dia, a pino sobre nossas cabeças...

Tomamos um banho no que considerei o término de um magnífico cânion, onde a profundidade ultrapassava os 20 metros, onde aqui e ali descobríamos pedras que se erguiam como montanhas, como ilhas que cansaram de subir...

Enfim partimos para encarar a grande subida, que alternamos ora pedalando, ora andando, pois jogávamos energia fora, toda vez que deslizávamos sobre as pedras soltas redondas, motivo que não desestimulou ao Djalma, Silvio e Marcos, que não dando bolas às derrapadas, usaram de técnica apurada para vencer o obstáculo, uma senhora ladeira empinada, que até andando deu trabalho e cansou.

Na subida, encontramos dois amigos também pedalando, mas em paralelo numa outra trilha, que se engalfinharam enquanto um tentava ultrapassar no momento em que o outro desviava de alguma coisa. Apenas arranhões, no espírito e na pele, coisas de quem vive competindo. Vovô e Gilton ficaram para trás, prestando auxílio com primeiros socorros à dupla.

No topo de tudo isso, ainda cheguei a procurar as duas velhas agoureiras para lhes lançar outro sorriso, mas já não estavam mais na calçada, palco de outros tantos agouros, para quem passa, subindo ou descendo; tem velho novo, mas tem também velho velho, simples opções de se ver a vida...

Mais um breve descanso na praça, recomposição de frutas e água, aproveitei para ir numa mercearia ver se tinham papel guardanapo para limpar meus óculos embaçados. A Senhora simpática se ofereceu perguntando se podia lavá-los, levou-os para dentro e os trouxe limpinhos como novos, desculpando-se por utilizar sabão de coco e não detergente; agradeci e lhe disse que era o sabão indicado, que até eu o usava. Radiante lançou-me um sorriso de contentamento, apenas porque foi reconhecida como gentil pessoa, fazendo questão que eu levasse alguns guardanapos, caso necessitasse pelo caminho.

A moça que ajudava no balcão perguntou se tínhamos ido até a cachoeira, e se tínhamos achado bonito. Respondi que sim, e que bonito seria de 5 em 5 anos, por conta da subida. Gargalhamos todos, agradeci e fui embora pegar minha bicicleta que havia deixado ao lado de duas mulas, que deviam estar a se perguntar que tipo de montaria era aquela. Virei para as duas e lhes disse que eram lindas; acho que agradeceram com as orelhas...

Partimos em busca de Campo do Brito, sempre subindo mais do que descendo, o que geraria o comentário de Vovô a comparar com o Iraque, uma trilha assim batizada por ser bastante inóspita, praticamente somente subidas, que ele afirmou que lá iria de novo, se enganado. No caminho passamos por uma pedreira, por uma estreita ponte metálica para pedestres, um bom local para um novo banho, mas estávamos apressados, afinal a trilha tinha que ser cumprida, e já eram onze horas, num Sol para lá de escaldante...

Vovô é sempre o nosso Anjo da Guarda, a pedalar com o último dos Carniças, fechando o Grupo para que nenhum desgarre da manada, que o Raimundo parecia de vez em quando tocar, sempre quando descíamos desembestados ladeira abaixo, aboiando a boiada com canto monótono e triste.

Mais um descanso numa praça com poucas sombras, e partimos novamente, dessa vez por uma longa reta asfaltada, uma cansativa ladeira longa, muito longa, que um trator também lento, fez questão de me acompanhar com seu tó-tó-tó enfadonho, até que ele também cansou e acelerou, desaparecendo mais adiante.

Helder, que havia ficado para trás, nos alcançou trazendo mais Carniças, liberando Vovô para esticar as canelas, que logo sumiu também no horizonte; acompanhou-me até chegarmos na cidade de Macambira, numa bela praça com muitas árvores, muitos bancos coloridos, um coreto e muitos canteiros bem cuidados. Faltavam apenas 7 quilômetros para a cachoeira, só descida, me garantiram, mas descobri que para descer, precisava ainda subir mais três quilômetros.

Enfim lá no alto, uma vista deslumbrante, o mundo inteiro lá embaixo estendido, verde bonito de campo cheio de vida, uma triste constatação: para lá desceríamos, e de lá subiríamos... Juro que perdi a graça, o bonito se tornou feio, a razão se chegou afastando a poesia do olhar, a realidade fez doer até aos fios de cabelo. Era um vale muito profundo...

Descemos...; nova carreira desembestada, creio eu ter gastado metade de minhas tamancas, coisa boa teoricamente, pois a bicicleta assim se torna mais leve, pensamento maluco enquanto desviava de outras tantas pedras, soltas para nosso desagrado... Muitos mata-burros nos aguardavam, todos eles perigosos, o que nos obrigava a atravessá-los nos equilibrando, nas traves de madeira gasta, nos velhos trilhos invertidos, porteiras virtuais que seguram o animal, dividindo os pastos.

Enfim a cachoeira tão esperada, duas horas da tarde, depois de quase 52 quilômetros de chão solto e de poeira, as sombras todas tomadas pelos nativos da região, que dali fazem a boa praia, no fim de semana em alegrias; nos alojamos por cima das pedras, onde um dia por ali passou bastante água. Nos desvencilhamos da pequena tralha, mas ainda era preciso, precipício abaixo, uma íngreme caminhada, que Barriga com o joelho dolorido, foi o Carniça da frente, segurando o grupo inteiro, por ser ele o desbravador, num caminho de um homem só, a andar por degraus naturais, da rocha bruta que um dia quebrou.

Água barrenta, cheia de produtos da mata, quase metade não encarou. Escalei um pouco mais, seguindo os passos do pessoal de Lagarto, experientes naquele lugar, e experimentei sentir dor na cabeça, com as pancadas da água forte a bater; meditei sobre o que seriam sedimentos em suspensão, depois de tanta poeira pelo chão pedalado?, depois de tanto suor já secado?

Subimos de volta o paredão, e descobri com grande alegria, que haviam telefonado para o Caldas; ele nos pouparia da grande subida de volta... Soltei um hip hurra silencioso, agradeci ao meu bom Deus, e ao meu bom Anjo da Guarda que Lhe transmitiu o recado, meu pedido de ciclista cansado, muito cansado...

Trocamos de roupa, guardamos as bicicletas, embarcamos no Oásis do Caldas, que saiu estrebuchando carregando tudo, em lenta subida reduzida, enfim pegando o asfalto, lá mais adiante bem longe a serra no lado de Itabaiana, que de manhã havíamos deixado; lá estava o nosso almoço..., e a nossa água, que ninguém mais tinha...

Almoçamos quase cinco da tarde, e meu prato mais pareceu com um cocho, daqueles de madeira onde o gado come; o que eu tinha de cansado, tinha de sede e fome. Almoçamos sob a algazarra da boa conversa, debaixo dos olhares intrigados, do dono e dos garçons, servindo um almoço quase na hora da janta...

Das trilhas que eu fiz, essa foi a segunda e a mais difícil em que orgulhosamente não precisei pegar carona no carro de apoio. Ainda sou o Carniça oficial, mas tenho fé de que outro aparecerá para tomar o meu lugar, momento em que serei promovido, de Carniça para outra coisa um pouco melhor.

Talvez quando eu conseguir, não tenha tanta graça como tem agora, onde o Coroa quando passa, recebe incentivos variados, e também alguns agouros, afinal, não é sempre que agradamos...

* * *

Um comentário:

  1. Boblitz, incrível seu poder com as palavras! Supreendeu-me a forma suave e precisa com que utiliza o vocabulário, as frases bem contruídas, expressando seus caminhos, fazendo-nos viajar na "Trilha Cachoeiras de Ribeira e Macambira". Parabéns!

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